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04 setembro 2012

Conflito de Jurisdição (Decisão)


Conflito de Jurisdição n. 2012.002490-4, de Balneário Camboriú
Relator: Des. Torres Marques
CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. DISCUSSÃO ACERCA DA COMPETÊNCIA PARA APURAR A PRÁTICA DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL PRATICADO POR TIO CONTRA SUA SOBRINHA. JUÍZO COMUM VERSUS JUÍZO ESPECIALIZADO. PRÁTICA DELITIVA NÃO ABRANGIDA PELA LEI 11.340/06. CONDUTA IMPULSIONADA PELA CONDIÇÃO ETÁRIA DA VÍTIMA. VIOLÊNCIA SEXUAL NÃO ATRELADA À VIOLÊNCIA DE GÊNERO ENTRE OFENSOR E OFENDIDA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO. CONFLITO PROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Conflito de Jurisdição n. 2012.002490-4, da comarca de Balneário Camboriú (2ª Vara Criminal), em que é suscitante o Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Balneário Camboriú, e suscitado o Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal da Comarca de Balneário Camboriú:
A Terceira Câmara Criminal decidiu, por votação unânime, julgar procedente o conflito. Custas de lei.
Participaram do julgamento, realizado no dia 6 de março de 2012, os Exmos. Des. Alexandre d'Ivanenko e Moacyr de Moraes Lima Filho. Funcionou pela Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Dr. Ernani Guetten de Almeida.
Florianópolis, 7 de março de 2012.



Torres Marques
PRESIDENTE E RELATOR



RELATÓRIO
Trata-se de conflito negativo de jurisdição suscitado pelo MM. Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal da comarca de Balneário Camboriú que refutou a competência que lhe foi declinada pelo MM. Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal daquela mesma comarca, o qual determinou a distribuição dos presentes autos ao suscitante por deter a competência para apurar a prática de crime de estupro de vulnerável no âmbito das relações domésticas e familiares.
Aduziu o suscitante que, apesar de os fatos narrados na denúncia terem sido supostamente praticados pelo tio contra a sobrinha, tal circunstância, por si só, não enseja a incidência da Lei n. 11.340/06, uma vez que a prática de ato sexual com a menor não estaria baseada na violência de gênero, mas sim na tenra idade da vítima, desprovida de meios para se defender dos abusos.
Assim, determinou a remessa dos autos a esta Superior Instância para que fosse dirimido o conflito instaurado entre as duas autoridades judiciárias que se julgaram incompetentes para processar e julgar a presente quaestio.
Com vista dos autos, a Procuradoria-Geral de Justiça opinou, em parecer da lavra do Exmo. Dr. Gercino Gerson Gomes Neto, pela procedência do conflito de jurisdição (fls. 50/53).



VOTO
Trata-se de conflito negativo de jurisdição entre a 1ª e a 2ª Vara Criminal da comarca de Balneário Camboriú diante da controvérsia a respeito da incidência das disposições da Lei n. 11.340/06 em relação ao crime do art. 217-A c/c art. 226, II, do Código Penal, em tese, praticado pelo tio contra a sobrinha.
Na origem, foi instaurado inquérito policial para apurar a prática de estupro de vulnerável supostamente perpetrado por E. L. Z. contra sua sobrinha I. A. A. durante os vários anos que viveram na residência da avó materna da infante.
A princípio, o caderno indiciário foi distribuído à 1ª Vara Criminal. No entanto, o representante do Ministério Público que atuava naquela unidade considerou que os fatos investigados aconteceram no âmbito familiar e, portanto, deveriam ser submetidos à apreciação do Promotor de Justiça com atribuições para intervir nos processos afetos ao Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, posicionamento encampado pelo magistrado, que, por sua vez, ordenou a redistribuição do feito à 2ª Vara Criminal, com competência para processar e julgar os delitos abrangidos pela Lei n. 11.340/06.
Remetido o procedimento à Promotora de Justiça que exercia suas atividades junto à 2ª Vara Criminal, foi oferecida a denúncia pela prática de crime contra a dignidade sexual. Porém, o juiz titular refluiu a competência que lhe foi declinada, por compreender que, apesar de a ofendida ser do sexo feminino e o ofensor ser seu tio, a prática criminosa não teria sido motivada pela violência de gênero, mas simplesmente pela condição etária da vítima.
Razão, de fato, assiste ao suscitante quando assevera que o delito narrado não foi perpetrado em razão da vulnerabilidade da vítima por ser do sexo feminino, mas sim por ser uma criança incapaz de se defender das investidas de parente por afinidade que se aproveitou de sua reduzida idade para satisfazer lascívia direcionada à infante.
Nesse viés, verifica-se que o delito narrado tem sua gênese em desvios comportamentais que despertam, nos autores de atos dessa natureza, desejo sexual por crianças e adolescentes – meninos ou meninas – a tornar sua conduta umbilicalmente ligada à pedofilia, que não reúne os traços culturais da opressão do homem para com a mulher, estes, sim, propulsores da idealização de mecanismos protetivos que inspiraram a denominada Lei Maria da Penha.
Aliás, como bem apontou o Exmo. Procurador Justiça, Dr. Gercino Gerson Gomes Neto, em seu parecer, "denota-se que a referida lei objetiva a diminuição da discriminação do gênero, ou seja, 'em outras palavras, o que a Lei visa a proteger, portanto, é aquelas situações em que o homem se sente dono das mulheres que estão ao seu redor, colocando-as sob o seu jugo e como submissas à sua rasteira e pretensa vontade soberana'" (fl. 52).
Portanto, não é a circunstância de a ofendida ser do sexo feminino e de os atos sexuais terem sidos perpetrados por familiar que residia com ela que irá determinar a ocorrência de violência doméstica baseada no gênero, uma vez que, na hipótese, a repudiável prática não teve relação com qualquer tipo de discriminação, submissão ou inferiozação da vítima, mas – tanto pior – partiu da perversão sexual de um homem que teria se aproveitado da idade muito superior à da infante, cuja vulnerabilidade advém, não do gênero, mas da falta de vivência e de experiência, típicas de tão inocente fase da vida.
Nesse particular, cumpre trazer à baila o precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mencionado pelo Procurador de Justiça, que trata justamente do conflito de competência entre o juízo especializado e o juízo comum. Vejamos:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. COMPETÊNCIA DA VARA COMUM VERSUS COMPETÊNCIA DA VARA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (MARIA DA PENHA). AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA FUNDADA EM DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO. COMPETÊNCIA COMUM. A Lei 11.340/06 visa a combater a violência fundada em discriminação de gênero, qual seja, a perigosa e errônea percepção da realidade que coloca a mulher em posição de inferioridade e submissão em relação ao homem e o leva a acreditar que seu comportamento dominador, discriminatório e violento (física e/ou moralmente) é legítimo, quando na verdade é criminoso. É exatamente visando a dar mais rápida e eficaz resposta à violência contra a mulher que a Lei Maria da Penha reclama especialização de unidades jurisdicionais que melhor compreendam e atuem sobre tal fenômeno criminógeno, não sendo, portanto, qualquer delito, ainda que cometido contra individuo do sexo feminino e dentro do ambiente familiar, que esteja na órbita de atuação da justiça especializada. Hipótese em que o crime foi cometido contra jovem do sexo feminino, enteada do réu, não se identificando no fato a violência de gênero, nos moldes preconizados pela lei, razão pela qual não há deslocamento da competência, que é a ordinária, para as varas especializadas. CONFLITO DE COMPETÊNCIA JULGADO PROCEDENTE. POR MAIORIA. (TJRS, Conflito de Jurisdição n. 70045333812, rel. Des. José Conrado Kurtz de Souza, j. 15/12/2011).
Do corpo do referido acórdão, extrai-se o seguinte excerto:
Assim que, para efeitos de deslocamento da competência para os Juizados de Violência Doméstica, não basta que estejam configuradas as situações descritas nos incisos do art. 5º da Lei 11.340/06. O vetor interpretativo de enquadramento no âmbito de proteção da referida norma não pode ser outro senão a análise sobre a (in)existência de violência baseada no gênero.
Nesse sentido, não é qualquer violência no âmbito familiar que ensejará a proteção da chamada Lei Maria da Penha. É preciso mais, é preciso que o motivo da violência esteja umbilicalmente ligado à discriminação de gênero.
Por isso, não é qualquer delito sexual que pode ser enquadrado como violência de gênero.
Ainda que não se desconheça estudos de criminologia que identificam, tourt court, sinais de submissão da figura feminina em todos os casos de violência do homem contra a mulher, é certo que para o enquadramento na esfera de proteção especial não é necessário apenas eventuais marcas intrínsecas à espécie delitiva, mas sim a indisfarçável marca do intuito de submissão como castigo, humilhação ou demonstração de poder.
Em outras palavras, o que deve ter impulsionado a prática delitiva não é apenas o desejo sexual (que inclusive pode se dar em relação a um homem/menino), mas sim a intenção de demonstrar a superioridade masculina em relação à mulher vítima do abuso, em verdadeiro desrespeito à diferença de gênero existente entre o algoz e a vítima.
No mesmo sentido:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. ESTUPRO PRATICADO CONTRA MENOR. LEI 11.340/06 (LEI MARIA DA PENHA). INAPLICABILIDADE. CONFLITO PROCEDENTE. Nos crimes sexuais perpetrados contra menores por aqueles que com elas tenham relação de ascendência em razão do poder familiar, não se aplica a competência da Lei nº 11.340/2006. CONFLITO PROVIDO (TJRS, Conflito de Jurisdição n. 70041380148, rel. Des. Danúbio Edon Franco, j. 20/4/2011).
E também:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. ATENTADOS VIOLENTOS AO PUDOR PERPETRADOS CONTRA MENINA PELO PRÓPRIO PAI. RELAÇÃO DE DESCENDÊNCIA, QUE NÃO SE CONFUNDE COM SUBMISSÃO ENTRE OS GÊNEROS MASCULINO E FEMININO, ASSIM INAPLICÁVEIS REGRAS DE COMPETÊNCIA ORIENTADAS PELA CHAMADA LEI MARIA DA PENHA. PROCEDÊNCIA. (TJRS, Conflito de Competência n. 70026961367, rel. Des. Marcelo Bandeira Pereira, j. 18/12/2008).
Ademais, não se pode olvidar que a especial tutela à violência doméstica ou familiar foi idealizada para trazer à luz toda sorte de abusos praticados na intimidade do lar que, até então, ficavam à margem do amparo estatal, os quais, no entanto, não se identificam com os atos sexuais perpetrados contra crianças e adolescentes por ascendentes ou outros familiares, pois tais práticas sempre foram reiteradamente combatidas e punidas com rigor, antes mesmo do advento da Lei n. 11.340/06, que, com razão, buscou assegurar maior proteção às mulheres reféns de seus próprios relacionamentos por conta de todo tipo de discriminação e submissão orientadas pela violência de gênero.
Diante dessas considerações, deve ser aqui definida a competência do juízo da 1ª Vara Criminal da comarca de Balneário Camboriú para processar e julgar os presentes autos, que, apesar de versar sobre estupro de vulnerável do sexo feminino praticado por afim, não se sujeita às disposições previstas na Lei n. 11.340/06, à medida que a força motora da ação delituosa não foi o conflito de gêneros, mas sim a idade da ofendida e a atração deturpada que essa condição despertava no agente.
Ante o exposto, julga-se procedente o presente conflito para fixar a competência do juízo suscitado.

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