Conflito de Jurisdição n. 2012.002490-4, de Balneário Camboriú
Relator: Des. Torres Marques
CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. DISCUSSÃO ACERCA DA
COMPETÊNCIA PARA APURAR A PRÁTICA DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL PRATICADO POR TIO
CONTRA SUA SOBRINHA. JUÍZO COMUM VERSUS JUÍZO ESPECIALIZADO. PRÁTICA DELITIVA
NÃO ABRANGIDA PELA LEI 11.340/06. CONDUTA IMPULSIONADA PELA CONDIÇÃO ETÁRIA DA
VÍTIMA. VIOLÊNCIA SEXUAL NÃO ATRELADA À VIOLÊNCIA DE GÊNERO ENTRE OFENSOR E
OFENDIDA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO. CONFLITO PROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Conflito
de Jurisdição
n. 2012.002490-4, da comarca de Balneário Camboriú (2ª
Vara Criminal),
em que é suscitante o Juiz
de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Balneário Camboriú, e suscitado o Juiz
de Direito da 1ª Vara Criminal da Comarca de Balneário Camboriú:
A Terceira
Câmara Criminal
decidiu, por votação unânime, julgar procedente o conflito. Custas de lei.
Participaram do julgamento, realizado no dia 6 de
março de 2012, os Exmos. Des. Alexandre d'Ivanenko e
Moacyr de Moraes Lima Filho. Funcionou pela Procuradoria-Geral de Justiça o
Exmo. Dr. Ernani Guetten de Almeida.
Florianópolis, 7 de março de 2012.
Torres Marques
PRESIDENTE E RELATOR
RELATÓRIO
Trata-se de conflito negativo de
jurisdição suscitado pelo MM. Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal da comarca de
Balneário Camboriú que refutou a competência que lhe foi declinada pelo MM.
Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal daquela mesma comarca, o qual determinou a
distribuição dos presentes autos ao suscitante por deter a competência para
apurar a prática de crime de estupro de vulnerável no âmbito das relações
domésticas e familiares.
Aduziu o suscitante que, apesar de os
fatos narrados na denúncia terem sido supostamente praticados pelo tio contra a
sobrinha, tal circunstância, por si só, não enseja a incidência da Lei n.
11.340/06, uma vez que a prática de ato sexual com a menor não estaria baseada
na violência de gênero, mas sim na tenra idade da vítima, desprovida de meios
para se defender dos abusos.
Assim, determinou a remessa dos autos a esta Superior Instância
para que fosse dirimido o conflito instaurado entre as duas autoridades
judiciárias que se julgaram incompetentes para processar e julgar a presente quaestio.
Com vista dos autos, a
Procuradoria-Geral de Justiça opinou, em parecer da lavra do Exmo. Dr. Gercino
Gerson Gomes Neto, pela procedência do conflito de jurisdição (fls. 50/53).
VOTO
Trata-se de conflito negativo de jurisdição entre a 1ª e a 2ª
Vara Criminal da comarca de Balneário Camboriú diante da controvérsia a
respeito da incidência das disposições da Lei n. 11.340/06 em relação ao crime
do art. 217-A c/c art. 226, II, do Código Penal, em tese, praticado pelo tio
contra a sobrinha.
Na origem, foi instaurado inquérito policial para apurar a
prática de estupro de vulnerável supostamente perpetrado por E. L. Z. contra
sua sobrinha I. A. A. durante os vários anos que viveram na residência da avó
materna da infante.
A princípio, o caderno indiciário foi distribuído à 1ª Vara
Criminal. No entanto, o representante do Ministério Público que atuava naquela
unidade considerou que os fatos investigados aconteceram no âmbito familiar e,
portanto, deveriam ser submetidos à apreciação do Promotor de Justiça com
atribuições para intervir nos processos afetos ao Juizado Especial de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, posicionamento encampado pelo magistrado,
que, por sua vez, ordenou a redistribuição do feito à 2ª Vara Criminal, com
competência para processar e julgar os delitos abrangidos pela Lei n. 11.340/06.
Remetido o procedimento à Promotora de Justiça que exercia suas
atividades junto à 2ª Vara Criminal, foi oferecida a denúncia pela prática de
crime contra a dignidade sexual. Porém, o juiz titular refluiu a competência
que lhe foi declinada, por compreender que, apesar de a ofendida ser do sexo
feminino e o ofensor ser seu tio, a prática criminosa não teria sido motivada
pela violência de gênero, mas simplesmente pela condição etária da vítima.
Razão, de fato, assiste ao suscitante quando assevera que o delito
narrado não foi perpetrado em razão da vulnerabilidade da vítima por ser do
sexo feminino, mas sim por ser uma criança incapaz de se defender das
investidas de parente por afinidade que se aproveitou de sua reduzida idade
para satisfazer lascívia direcionada à infante.
Nesse viés, verifica-se que o delito narrado tem sua gênese em
desvios comportamentais que despertam, nos autores de atos dessa natureza,
desejo sexual por crianças e adolescentes – meninos ou meninas – a tornar sua
conduta umbilicalmente ligada à pedofilia, que não reúne os traços culturais da
opressão do homem para com a mulher, estes, sim, propulsores da idealização de
mecanismos protetivos que inspiraram a denominada Lei Maria da Penha.
Aliás, como bem apontou o Exmo. Procurador Justiça, Dr. Gercino
Gerson Gomes Neto, em seu parecer, "denota-se que a referida lei objetiva
a diminuição da discriminação do gênero, ou seja, 'em outras palavras, o que a
Lei visa a proteger, portanto, é aquelas situações em que o homem se sente dono
das mulheres que estão ao seu redor, colocando-as sob o seu jugo e como
submissas à sua rasteira e pretensa vontade soberana'" (fl. 52).
Portanto, não é a circunstância de a ofendida ser do sexo
feminino e de os atos sexuais terem sidos perpetrados por familiar que residia
com ela que irá determinar a ocorrência de violência doméstica baseada no
gênero, uma vez que, na hipótese, a repudiável prática não teve relação com
qualquer tipo de discriminação, submissão ou inferiozação da vítima, mas –
tanto pior – partiu da perversão sexual de um homem que teria se aproveitado da
idade muito superior à da infante, cuja vulnerabilidade advém, não do gênero,
mas da falta de vivência e de experiência, típicas de tão inocente fase da
vida.
Nesse particular, cumpre trazer à baila o precedente do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, mencionado pelo Procurador de Justiça, que
trata justamente do conflito de competência entre o juízo especializado e o
juízo comum. Vejamos:
CONFLITO DE
COMPETÊNCIA. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. COMPETÊNCIA DA VARA COMUM VERSUS COMPETÊNCIA
DA VARA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (MARIA DA PENHA). AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA FUNDADA
EM DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO. COMPETÊNCIA COMUM. A Lei 11.340/06 visa a
combater a violência fundada em discriminação de gênero, qual seja, a perigosa
e errônea percepção da realidade que coloca a mulher em posição de
inferioridade e submissão em relação ao homem e o leva a acreditar que seu
comportamento dominador, discriminatório e violento (física e/ou moralmente) é
legítimo, quando na verdade é criminoso. É exatamente visando a dar mais rápida
e eficaz resposta à violência contra a mulher que a Lei Maria da Penha reclama
especialização de unidades jurisdicionais que melhor compreendam e atuem sobre
tal fenômeno criminógeno, não sendo, portanto, qualquer delito, ainda que
cometido contra individuo do sexo feminino e dentro do ambiente familiar, que
esteja na órbita de atuação da justiça especializada. Hipótese em que o crime
foi cometido contra jovem do sexo feminino, enteada do réu, não se identificando
no fato a violência de gênero, nos moldes preconizados pela lei, razão
pela qual não há deslocamento da competência, que é a ordinária, para as varas
especializadas. CONFLITO DE COMPETÊNCIA JULGADO PROCEDENTE. POR MAIORIA. (TJRS,
Conflito de Jurisdição n. 70045333812, rel. Des. José Conrado Kurtz de Souza,
j. 15/12/2011).
Do corpo do referido acórdão, extrai-se o seguinte excerto:
Assim que, para efeitos de deslocamento da competência para
os Juizados de Violência Doméstica, não basta que estejam configuradas as
situações descritas nos incisos do art. 5º da Lei 11.340/06. O vetor
interpretativo de enquadramento no âmbito de proteção da referida norma não
pode ser outro senão a análise sobre a (in)existência de violência baseada no
gênero.
Nesse sentido, não é qualquer violência no âmbito familiar
que ensejará a proteção da chamada Lei Maria da Penha. É preciso mais, é
preciso que o motivo da violência esteja umbilicalmente ligado à discriminação
de gênero.
Por isso, não é qualquer delito sexual que pode ser
enquadrado como violência de gênero.
Ainda que não se desconheça estudos de criminologia que
identificam, tourt court, sinais de submissão da figura feminina em
todos os casos de violência do homem contra a mulher, é certo que para o
enquadramento na esfera de proteção especial não é necessário apenas eventuais
marcas intrínsecas à espécie delitiva, mas sim a indisfarçável marca do intuito
de submissão como castigo, humilhação ou demonstração de poder.
Em outras palavras, o que deve ter impulsionado a prática
delitiva não é apenas o desejo sexual (que inclusive pode se dar em relação a
um homem/menino), mas sim a intenção de demonstrar a superioridade masculina em
relação à mulher vítima do abuso, em verdadeiro desrespeito à diferença de
gênero existente entre o algoz e a vítima.
No mesmo sentido:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. ESTUPRO PRATICADO CONTRA
MENOR. LEI 11.340/06 (LEI MARIA DA PENHA). INAPLICABILIDADE. CONFLITO
PROCEDENTE. Nos crimes sexuais perpetrados contra menores por aqueles que com
elas tenham relação de ascendência em razão do poder familiar, não se aplica a
competência da Lei nº 11.340/2006. CONFLITO PROVIDO (TJRS, Conflito de
Jurisdição n. 70041380148, rel. Des. Danúbio Edon Franco, j. 20/4/2011).
E também:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. ATENTADOS VIOLENTOS AO PUDOR
PERPETRADOS CONTRA MENINA PELO PRÓPRIO PAI. RELAÇÃO DE DESCENDÊNCIA, QUE NÃO SE
CONFUNDE COM SUBMISSÃO ENTRE OS GÊNEROS MASCULINO E FEMININO, ASSIM
INAPLICÁVEIS REGRAS DE COMPETÊNCIA ORIENTADAS PELA CHAMADA LEI MARIA DA PENHA.
PROCEDÊNCIA. (TJRS, Conflito de Competência n. 70026961367, rel. Des. Marcelo
Bandeira Pereira, j. 18/12/2008).
Ademais, não se pode olvidar que a especial tutela à violência
doméstica ou familiar foi idealizada para trazer à luz toda sorte de abusos
praticados na intimidade do lar que, até então, ficavam à margem do amparo
estatal, os quais, no entanto, não se identificam com os atos sexuais
perpetrados contra crianças e adolescentes por ascendentes ou outros
familiares, pois tais práticas sempre foram reiteradamente combatidas e punidas
com rigor, antes mesmo do advento da Lei n. 11.340/06, que, com razão, buscou
assegurar maior proteção às mulheres reféns de seus próprios relacionamentos
por conta de todo tipo de discriminação e submissão orientadas pela violência
de gênero.
Diante dessas considerações, deve ser aqui definida a
competência do juízo da 1ª Vara Criminal da comarca de Balneário Camboriú para
processar e julgar os presentes autos, que, apesar de versar sobre estupro de
vulnerável do sexo feminino praticado por afim, não se sujeita às disposições
previstas na Lei n. 11.340/06, à medida que a força motora da ação delituosa
não foi o conflito de gêneros, mas sim a idade da ofendida e a atração
deturpada que essa condição despertava no agente.
Ante o exposto, julga-se procedente o presente conflito para
fixar a competência do juízo suscitado.
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