Os casos de homicídio, latrocínio e sequestro com morte deveriam
ter pena de 50 anos, consoante postulação de alguns Promotores de São
Paulo (O Estado de S. Paulo de 27.07.12, p. C4). Pedir mais penas para
reduzir a impunidade desses crimes significa (a) não conhecer o problema
criminal (em toda sua extensão real e empírica) nem tampouco a lógica
do (não) funcionamento da Justiça criminal no Brasil ou (b) conhecer
tudo isso e pedir mais pena apenas para satisfazer os instintos de
vingança ou para demagogicamente agradar a população (e setores da
mídia).
Há trinta anos se pede e se faz a mesma
coisa (aumento de pena, mais policiais, mais presídios, mais viaturas,
mais juízes, mais prisões etc.) e a criminalidade só aumenta: em 1979
tínhamos 9,4 homicídios para cada 100 mil habitantes, contra 27,3 em
2010 (Fonte: Datasus e Instituto Avante Brasil). Se os Promoteres querem
mesmo reduzir a impunidade, o que parece bastante louvável, três coisas
devem ser feitas: (a) combater o crime organizado (não há notícia de
que o Estado brasileiro, em toda a sua existência, tenha extirpado
alguma organização criminosa); (b) lutar por maior efetividade da
Justiça criminal e (c) ajudar a desenvolver um amplo programa de
prevenção do delito e da marginalização social.
A
impunidade, no entanto, não se combate com aumento da pena, sim, com a
certeza da sua aplicação e execução (isso Beccaria já dizia em 1764). Em
suma: a impunidade se combate com efetividade. Ocorre que o índice de
efetividade da Justiça criminal brasileira é baixíssimo (e é aqui que
está o grave problema que deveria ser enfrentado primordialmente pelos
Promotores).
Em 31.12.07 havia 143 mil inquéritos
de homicídios parados nas delegacias (por falta de tudo: estrutura
material, policiais, polícia técnica sucateada, falta de serviço de
inteligência etc.). Para o CNMP o número é maior: 158.319 (dados
fornecidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP -, no dia
10.05.11).
Fez-se um mutirão (governo, Justiça e
Ministério Público) para atacar essa causa evidente da impunidade.
Fracasso quase absoluto! O objetivo era concluir cerca de 143 mil
inquéritos que foram abertos pelas polícias civis até 2007, mas apenas
20% do total chegou ao fim e, desses, foi muito baixo o índice de
denúncia (Folha de S. Paulo de 23.02.12).
Enquanto
a lei vigente não for aplicada, é ilógico se postular aumento de pena.
Para que aumentar a pena se o sistema não está funcionando bem? De cada
cem homicídios no Brasil apenas 8 são devidamente apurados (autoria e
circunstâncias do crime). Essa é a estimativa de JulioJacoboWaiselfisz,
que é coordenador da pesquisa Mapas da Violência 2011, divulgada pelo
Ministério da Justiça (O Globo de 09.05.11, p. 3).
Mas
nem todos os crimes apurados resultam em condenação. No final, cerca de
4 ou 5%. Em alguns Estados (Alagoas, por exemplo), o índice de solução
de homicídios não passa de 2%.
Um dos primeiros
filtros da impunidade reside precisamente na investigação do crime. A
polícia brasileira não conta com boa infraestrutura, grande parte dos
policiais está desmotivada, na polícia existe muita corrupção, a polícia
técnica está sucateada, faltam policiais ou auxiliares etc.: tudo isso
explica o baixo índice de apuração dos crimes. O Ministério Público
deveria exercer o controle externo da Polícia e tentar solucionar todos
esses crônicos problemas. Na prática, o controle externo não vem
funcionando. Como nada funciona, mais reivindicação de aumento de pena!
A
situação de abandono e de inércia é generalizada, inclusive nos estados
que estão apresentando diminuição no número de mortes: São Paulo e Rio
de Janeiro. No RJ existem 60 mil inquéritos de homicídios, instaurados
até 31.12.2007.
São 27, 3 homicídios (média
nacional) por 100 mil habitantes. Acima de 10 a ONU considera como
epidemia. Vivemos uma grande epidemia de violência no nosso país (que
ocupa o vigésimo lugar no ranking mundial).
A
sensação de impunidade é muito grande e isso, claramente, estimula o
cometimento de novos crimes. O velho modelo investigativo brasileiro,
fundado na confissão e nas testemunhas, está esgotado. É preciso
estruturar a polícia brasileira para fazer investigações técnicas e
inteligentes. Do contrário, continuaremos no ranking dos países mais
violentos do mundo, dizimando vidas preciosas, o que gera forte impacto
não só nas famílias das vítimas, senão também inclusive na economia
nacional.
A impunidade generalizada, tanto dos
grandes como dos pequenos crimes, assim como das infrações
administrativas, civis, de trânsito etc., constitui um dos termômetros
da decadência das sociedades democráticas, fundadas na divisão de
poderes e no império do ordenamento jurídico (lei, constituição e
tratados internacionais).
A cultura da impunidade
acoberta não só os pequenos delitos senão, sobretudo, os crimes
violentos (especialmente os praticados pelos próprios agentes do Estado,
destacando-se os policiais militares) assim como os cometidos por
grandes corporações, por partidos políticos ou agentes públicos, que
protagonizam desonestidades perversas, assim como malandragens
insidiosas e cotidianas, típicas dos colarinhos brancos.
LUIZ FLÁVIO GOMES Jurista e cientista criminal. Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito Penal pela USP. Presidente da Rede LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Blog: www.blogdolfg.com.br. Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG.
LUIZ FLÁVIO GOMES Jurista e cientista criminal. Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito Penal pela USP. Presidente da Rede LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Blog: www.blogdolfg.com.br. Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG.
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